quarta-feira, 14 de novembro de 2012




...CONTINUAÇÃO...
DEVOÇÃO TRATADO DA VIRGEM MARIA...


Capítulo V

Motivos que nos recomendam esta devoção

Artigo I

Esta devoção nos põe inteiramente ao serviço de Deus


135. Primeiro motivo, que nos mostra a excelência desta consagração de nós mesmos a Jesus Cristo pelas mãos de Maria.

Desde que não se pode conceber sobre a terra emprego mais relevante que o serviço de Deus; se o menor servidor de Deus é mais rico, mais poderoso e mais nobre que todos os reis e imperadores da terra que não sejam também servidores de Deus, quais não serão as riquezas, o poder e a dignidade do fiel e perfeito servidor que se tiver devotado ao serviço divino, tão inteiramente e sem reserva quanto for capaz!? Assim será um fiel e amoroso escravo de Jesus e Maria, que, pelas mãos de Maria Santíssima, se entregar inteiramente ao serviço deste Rei dos reis, e que não reservar nada para si: nem todo ouro da terra e as belezas do céu o podem pagar.

136. As outras congregações, associações e confrarias eretas em honra de Nosso Senhor e de Nossa Senhora, que promovem grande bem no cristianismo, não mandam que se dê tudo sem reserva; não prescrevem a seus associados mais que certas práticas e atos para satisfazerem suas obrigações; deixam-nos livres em todas as outras ações e instantes de sua vida. Mas nesta devoção, que apresento, damos sem reserva a Jesus e Maria todos os nossos pensamentos, palavras, ações e sofrimentos, e todos os momentos da vida: de sorte que, ou despertados ou adormecidos, bebendo ou comendo, nas ações as mais importantes como nas mais corriqueiras, pode-se sempre dizer em verdade que o fazemos, embora nem sequer nos ocorra a idéia, pertence a Jesus e Maria em virtude da nossa oferta, a menos que a retratemos expressamente. Que consolação!

137. Além disso, como já ficou dito, não há outra prática como esta, pela qual nos desfazemos facilmente dum certo espírito de propriedade, que se insinua até nas melhores ações; e nosso bom Jesus nos dá esta grande graça em recompensa do ato heróico e desinteressado que fizemos, cedendo-lhe, pelas mãos de sua Mãe Santíssima, todo o valor de nossas boas obras. Se, mesmo neste mundo, ele dá o cêntuplo àqueles que, por seu amor, abandonam os bens exteriores, temporais e caducos (cf. Mt 19, 20), em que proporção dará aos que lhe sacrificarem até seus bens interiores e espirituais?!

138. Jesus, nosso divino amigo, deu-se a nós sem reserva, seu corpo e sua alma, suas virtudes, graças e méritos: “Se toto totum me comparavit” – diz São Bernardo: Ele ganhou-me inteiramente dando-se inteiramente a mim. A justiça e a gratidão exigem, portanto, que lhe demos tudo que pudermos. Foi ele o primeiro a ser liberal para conosco; sejamos também generosos para com sua liberalidade, durante a vida, na hora da morte e por toda a eternidade. “Cum liberali liberalis erit”.


Artigo II

Esta devoção leva a imitar o exemplo
dado por Jesus Cristo, e a praticar a humildade

139. Segundo motivo, que nos mostra que é justo e vantajoso aos cristãos consagrar-se, por esta prática, inteiramente à Santíssima Virgem, a fim de pertencer mais perfeitamente a Jesus Cristo.

Este bom Mestre não desdenhou encerrar-se no seio da Santíssima Virgem, como um cativo, um escravo amoroso, e submeter-se a ela, obedecendo-lhe durante trinta anos. É aqui, repito, que o espírito humano se confunde, quando reflete seriamente nesta atitude da divina Sabedoria encarnada, que não quis, embora podendo, dar-se diretamente aos homens, preferindo fazê-lo por intermédio da Santíssima Virgem; que não quis aparecer no mundo em plena idade viril, independentemente de quem quer que fosse, mas como uma criancinha dependendo dos cuidados de sua Mãe Santíssima, e mantida por ela.

Esta Sabedoria infinita, cheia de um desejo imenso de glorificar a Deus seu Pai e de salvar os homens, não encontrou meio algum mais perfeito nem mais simples de fazê-lo, do que submetendo-se em todas as coisas à Santíssima Virgem, não só durante oito, dez ou quinze anos, mas durante trinta anos; e Ele deu mais glória a Deus seu Pai durante todo esse tempo de submissão à Santíssima Virgem, como não lhe deu empregando os últimos três anos de sua vida a fazer prodígios, e pregar por toda parte, a converter os homens. Oh! que grande glória damos a Deus, submetendo-nos a Maria, a exemplo de Jesus.

Com um exemplo tão visível e conhecido por todo mundo, seremos insensatos a ponto de pensar que encontraremos um meio mais perfeito e mais certo submetendo-nos a Maria, a exemplo de seu Filho?

140. Lembremos aqui, para prova da dependência que devemos ter para com Maria, o que já ficou dito (nn. 14-39), citando os exemplos que nos dão o Pai, o Filho e o Espírito Santo nesta dependência. Deus Pai nos deu e nos dá seu Filho por ela somente, só produz outros filhos por meio dela, e só por intermédio dela nos comunica suas graças. Deus Filho foi formado para todo o mundo, por ela, e não é senão por ela que é formado todos os dias, e gerado por ela em união com o Espírito Santo, é ela a única via pela qual nos comunica suas virtudes e seus méritos. O Espírito Santo formou Jesus Cristo por meio dela, e por meio dela forma os membros de seu corpo místico, e só por ela nos dispensa seus dons e favores. Depois de exemplos tão claros e instantes, poderemos, sem uma extrema cegueira,prescindir de Maria, deixar de consagrar-nos a ela e de depender dela para irmos a Deus e a ele nos sacrificarmos?

141. Eis algumas passagens dos Santos Padres, que escolhi como prova do que acabo de dizer: “Duo filii Mariae sunt, homo Deus e homo purus; unius corporaliter, et alterius spiritualiter mater est Maria” (S. Boav. e Orígenes).50
50) “Maria tem dois filhos, um, homem-Deus e o outro, puro homem; de um Maria é Mãe corporal, do outro, mãe espiritual” (Speculum B.M.V., lect. III, § 1, 2º).

“Haec est voluntas Dei, qui totum nos voluit habere per Mariam; ac proinde, si quid spei, si quid gratiae, si quid salutis, ab ea noverimus redundare” (S. Bern.).51
51) São Bernardo (De Aquaeductu, n. 6): “Tal é a vontade de Deus que quis que tenhamos tudo por Maria. Se, portanto, temos alguma esperança, alguma graça, algum dom salutar, saibamos que isto nos vem por suas mãos”.

“Omnia dona, virtutes, gratiae ipsius Spiritus Sancti, quibus vult, et quando vult, quomodo vult, quantum vult per ipsius manus administrantur” (S. Bernardino).52
52) São Bernardino de Sena (Sermo in Nativ. B.V. art. un., cap. 8): “Todos os dons, virtudes e graças do Espírito Santo são distribuídos pelas mãos de Maria, a quem ela quer, quando quer, com o quer, e quanto quer”.

Qui indignus eras cui daretur, datum est Mariae, ut per eam acciperes quidquid haberes” (S. Bernardo).53
53) São Bernardo (Sermo 3 in vigilia Nativitatis Domini, n. 10): “Eras indigno de receber as graças divinas: por isso elas foram dadas a Maria, a fim de que por ela recebesses tudo o que terias”.

142. Deus, vendo que somos indignos de receber suas graças diretamente de suas mãos divinas, dá-as a Maria, a fim de obtermos por ela o que ele nos quer dar; e também redunda em glória para ele, receber pelas mãos de Maria o reconhecimento, o respeito e o amor que lhe devemos por seus benefícios. É, pois, muito justo que imitemos o procedimento de Deus, a fim – diz São Bernardo54 – de que a graça volte a seu autor pelo mesmo canal por onde veio: “Ut eodem alveo ad largitorem gratia redeat quo fluxit”.
54) “De Aquaeductu”, n. 18.

É o que fazemos por meio de nossa devoção: oferecemos e consagramos à Santíssima Virgem tudo o que somos e tudo o que possuímos, a fim de que Nosso Senhor receba por sua mediação a glória e o reconhecimento que lhe devemos.Reconhecemo-nos indignos e incapazes de, por nós mesmos, aproximar-nos de sua majestade infinita; e por isso servimo-nos da intercessão da Santíssima Virgem.

143. Além disso, é uma prática de grande humildade, virtude que Deus ama acima de todas as outras. Uma alma que se eleva a si mesma, rebaixa Deus; Deus resiste aos soberbos e dá sua graça aos humildes (Tg 4, 6). Se vos rebaixais crendo-vos indignos de aparecer diante dele e de vos aproximar dele, ele desce, rebaixa-se para vir até vós, para comprazer-se em vós, e para vos elevar.
Quando, porém, tentamos aproximar-nos atrevidamente de Deus, sem medianeiro, Deus se esquiva e não conseguimos atingi-lo. Oh! quanto ele ama a humildade de coração. É a esta humildade que convida esta prática de devoção, pois ensina a não nos aproximarmos diretamente de Nosso Senhor, por misericordioso e doce que ele seja, mas a nos servirmos sempre da intercessão da Santíssima Virgem tanto para comparecer diante de Deus, como para lhe falar, aproximar-nos dele, oferecer-lhe qualquer coisa, para nos unirmos ou nos consagrarmos a ele.


Artigo III

Esta devoção nos proporciona as boas graças da Santíssima Virgem

§ I. Maria se dá a quem é seu escravo por amor.

144. Terceiro motivo. A Santíssima Virgem, Mãe de doçura e misericórdia, que jamais se deixa vencer em amor e liberalidade, vendo que alguém se lhe entrega inteiramente, para honrá-la e servir-lhe, despojando-se do que tem de mais caro para com isso adorná-la, entrega-se também inteiramente e dum modo inefável, a quem tudo lhe dá. Ela o faz imergir no abismo de suas graças, e reveste-o de seus merecimentos, dá-lhe o apoio de seu poder, ilumina-o com sua luz, abrasa-o de seu amor, comunica-lhe suas virtudes: sua humildade, sua fé, sua pureza, etc.; constitui-se seu penhor, seu suplemento, seu tudo para com Jesus. Como, enfim, essa pessoa consagrada é toda de Maria, Maria também é toda dela; de modo que se pode dizer desse perfeito servo e filho de Maria o que São João Evangelista diz de si próprio, que ele a tomou como um bem, para sua casa: “Accepit eam discipulus in sua” (Jo 19, 27).

145. É isto que produz na alma fiel uma grande desconfiança, desprezo e ódio de si mesma, ao lado de uma confiança ilimitada na Santíssima Virgem, sua boa Senhora.Já não procura, como antes, o seu apoio em suas próprias disposições, intenções, méritos, virtudes e boas obras, pois, tendo sacrificado tudo a Jesus por esta boa Mãe, só lhe resta um tesouro que resume todos os seus bens e de que ele não dispõe, e esse tesouro é Maria.

É o que o faz aproximar-se de Nosso Senhor, sem receio servil nem escrupuloso, e rezar com extrema confiança; é o que o faz adquirir os sentimentos do devoto e sábio abade Ruperto, o qual, aludindo à vitória de Jacob sobre o anjo (cf. Gn 32, 23), dirige à Santíssima Virgem estas belas palavras: “Ó Maria, minha princesa e Mãe Imaculada de Deus-homem, Jesus Cristo, é meu desejo lutar com este Homem, isto é, o Verbo divino, armado não com meus próprios méritos, mas com os vossos: “O Domina, Dei Genitrix, Maria, et incorrupta Mater Dei e hominis, non meis, sed tuis armatus meritis, cum  isto Viro, scilicet Verbo Dei, luctare cupio”.55
55) Rup., Prolog. in Cant.

Oh! Quão poderoso e forte é, para Jesus Cristo, quem está armado dos méritos e da intercessão da digna Mãe de Deus, que, como diz Santo Agostinho, venceu amorosamente o Todo-poderoso.

§ II. Maria purifica nossas boas obras,
embeleza-as e as torna aceitáveis a seu Filho.

146. Esta bondosa Senhora purifica, embeleza e torna aceitáveis a seu Filho todas as nossas boas obras, porque, por esta devoção, as damos todas a ele pelas mãos de sua Mãe Santíssima.

 Ela as purifica de toda mancha de amor-próprio e do apego imperceptível à criatura, apego que se insinua insensivelmente nas melhores ações. Desde que elas estão em suas mãos puríssimas e fecundas, estas mesmas mãos, que não foram jamais manchadas nem ociosas, e que purificam tudo que tocam, tiram do presente que lhe fazemos tudo que pode deteriorá-lo ou torná-lo imperfeito.

147.  Ela embeleza nossas boas ações ornando-as com seu méritos e virtudes. É como se um campônio, querendo ganhar a amizade do rei, se dirigisse à rainha, e lhe apresentasse uma maçã, que representasse todo o seu lucro, e lhe pedisse que a oferecesse ao rei. A rainha, acolhendo a pobre dádiva do camponês, punha-a no centro de grande e magnífico prato de ouro, e apresentava-a assim ao rei, da parte do ofertante. Nestas circunstâncias, a maçã, indigna por si mesma de ser oferecida ao rei, torna-se um presente digno de sua majestade, devido ao prato de ouro e à importância da pessoa que a apresenta.

148.  Ela apresenta essas boas obras a Jesus Cristo, pois nada retém para si do que lhe ofertamos. Tudo remete fielmente a Jesus. Se algo lhe damos a ela, damos necessariamente  a Jesus. Se a louvamos e glorificamos, logo ela louva e glorifica a Jesus. Hoje como outrora, quando Santa Isabel a exaltou, ela canta, quando a louvamos e bendizemos: “Magnificat anima mea Dominum...” (Lc 1, 46).

149.  Faz Jesus aceitar essas boas obras, por pequeno e pobre que seja o presente que ofertamos ao Santo dos Santos e Rei dos reis. Quando apresentamos alguma coisa a Jesus, de nossa própria iniciativa e apoiados em nossa própria capacidade e disposição, Jesus examina o presente e muitas vezes o rejeita em vista das manchas que a dádiva contraiu do nosso amor-próprio, como antigamente rejeitou os sacrifícios dos judeus por estarem cheios de vontade própria.
Quando, porém, lhe apresentamos algo pelas mãos puras e virginais de sua bem-amada, tomamo-lo pelo seu lado fraco, se me é permitida a expressão. Ele não considera tanto a oferta que lhe fazemos como sua boa Mãe que lha apresenta; não olha tanto a procedência como a portadora. Deste modo, Maria, que nunca foi repelida, e, pelo contrário, foi sempre bem recebida, faz que seja agradavelmente recebido pela Majestade divina tudo que lhe apresenta, pequeno ou grande: basta que Maria lho apresente para que Jesus o receba e acolha. Conselho valioso é o que dava São Bernardo aos que dirigia no caminho da perfeição:“Quando quiserdes oferecer qualquer coisa a Deus, tende o cuidado de oferecê-lo pelas mãos agradáveis e digníssimas de Maria, a menos que queirais ser rejeitados” –Modicum quid offerre desideras, manibus Mariae offerendum tradere cura, si  non vis sustinere repulsam.56
56) São Bernardo: “De Aquaeductu”.

150. E, como vimos (n. 146), a própria natureza não inspira aos pequenos como agir em relação aos grandes? Por que não há de levar-nos a graça a fazer o mesmo em relação a Deus, que está infinitamente acima de nós, e diante do qual somos menos que átomos? Tendo além disso uma advogada tão poderosa, que não foi jamais repelida; tão habilidosa que conhece os segredos para ganhar o Coração de Deus; tão boa e caridosa que não se esquiva a ninguém, por pequeno e mau que seja.

Referirei mais adiante a verdadeira figura das verdades que afirmo, na história de Jacob e Rebeca (v. cap. VI).

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