quarta-feira, 14 de novembro de 2012



...CONTINUAÇÃO DO VERDADEIRO TRATADO DA DEVOÇÃO
Á VIRGEM MARIA...

Artigo I

Uma perfeita e inteira consagração
de si mesmo à Santíssima Virgem

121. Esta devoção consiste, portanto, em entregar-se inteiramente à Santíssima Virgem, a fim de, por ela, pertencer inteiramente a Jesus Cristo.46

É preciso dar-lhe:

1º nosso corpo com todos os seus membros e sentidos,
2º nossa alma com todas as suas potências,
 nossos bens exteriores, que chamamos de fortuna, presentes e futuros,
4º nossos bens interiores e espirituais, que são nossos méritos, nossas virtudes e nossas boas obras passadas, presentes e futuras. Numa palavra, tudo que temos na ordem da natureza e na ordem da graça, e tudo que, no porvir, poderemos ter na ordem da natureza, da graça e da glória, e isto sem nenhuma reserva, sem a reserva sequer de um real, de um cabelo, da menor boa ação, para toda a eternidade, sem pretender e nem esperar a mínima recompensa de sua oferenda e de seu serviço, a não ser a honra de pertencer a Jesus Cristo por ela e nela, mesmo que esta amável Senhora não fosse, como é sempre, a mais liberal e reconhecida das criaturas.

46) Cf. S. João Damasceno: “Mentem, animam, corpus, nos iposque totos consecramus” (Sermo I in Dormitione B. V.).

122. Importa notar, aqui, duas coisas que há nas boas obras que fazemos, a saber: a satisfação e o mérito, ou o valor satisfatório ou impetratório e o valor meritório.
O valor satisfatório ou impetratório duma boa obra é uma boa ação na medida em que satisfaz a pena devida pelo pecado, ou em que obtêm alguma nova graça; o valor meritório ou o mérito é uma boa ação, em quanto merece a graça e a glória eterna.
Ora, nesta consagração de nós mesmos à Santíssima Virgem, nós lhe damos todo o valor satisfatório, impetratório e meritório, ou por outra, as satisfações e os méritos de todas as nossas boas obras: damos-lhe nossos méritos, nossas graças e nossas virtudes, não para comunicá-los a outrem (porque nossos méritos, graças e virtudes, propriamente falando, são incomunicáveis; só Jesus Cristo, fazendo-se nosso penhor diante do Pai, pôde comunicar-nos seus méritos), mas para no-los conservar, aumentar e encarecer, como diremos ainda. (V. nn. 146, ss). Damos-lhe nossas satisfações para que ela as comunique a quem bem lhe pareça e para maior glória de Deus.


123. Daí segue  que, por esta devoção, damos a Jesus Cristo, do modo mais perfeito, pois que o fazemos pelas mãos de Maria, tudo que lhe podemos dar, e muito mais que por outras devoções, pelas quais lhe damos uma parte de nosso tempo ou de nossas boas obras, ou uma parte de nossas satisfações e mortificações. Aqui damos e consagramos tudo, até o direito de dispor dos bens interiores, e as satisfações que ganhamos por nossas boas obras, dia a dia: e isto não se faz nem mesmo numa ordem religiosa.
Nestas, consagram-se a Deus os bens de fortuna pelo voto de pobreza, os bens do corpo pelo voto de castidade, a vontade própria pelo voto de obediência, e, às vezes, a liberdade do corpo pelo voto de clausura. Não se lhe dá, porém, a liberdade ou o direito que temos de dispor de nossas boas obras, nem se renuncia tanto como se pode ao que o cristão tem de mais precioso e caro: seus méritos e satisfações.

124. 2º Uma pessoa, que assim voluntariamente se consagrou e sacrificou a Jesus Cristo por Maria, já não pode dispor do valor de nenhuma de suas boas ações. Tudo o que sofre, tudo o que pensa, diz e faz de bem pertence a Maria, para que ela de tudo disponha conforme a vontade e para maior glória de seu Filho, sem que, entretanto, esta dependência prejudique de modo algum as obrigações de estado no qual esteja presentemente, ou venha a estar no futuro: por exemplo, as obrigações de um sacerdote que, por dever de ofício ou por outro motivo, deve aplicar o valor satisfatório e impetratório da santa missa a um particular; pois não se faz esta oferta a não ser conforme a ordem de Deus e os deveres de estado.

125. 3º A consagração é feita conjuntamente à Santíssima Virgem e a Jesus Cristo; à Santíssima Virgem como ao meio perfeito que Jesus Cristo escolheu para se unir a nós e nós a ele; e a Nosso Senhor como o nosso fim último, ao qual devemos tudo o que somos, como a nosso Redentor e nosso Deus.

Artigo II

Uma perfeita renovação dos votos do batismo

126. Disse acima (V. nº 120) que a esta devoção podia-se chamar muito bem uma perfeita renovação dos votos ou promessas do santo batismo.

Todo cristão, antes do batismo, era escravo do demônio, pois lhe pertencia. Na ocasião do batismo o cristão, por sua própria boca ou pela de seu padrinho e de sua madrinha, renunciou a Satanás, a suas pompas e obras, e tomou Jesus Cristo para seu Mestre e soberano Senhor, passando a depender dele, na qualidade de escravo por amor. É o que se faz pela presente devoção: renuncia-se (como está indicado na fórmula de consagração) ao demônio, ao mundo, ao pecado e a si próprio, dando-se inteiramente a Jesus Cristo pelas mãos de Maria. Faz-se até algo mais, pois se, no batismo, falamos ordinariamente pela boca de outrem, pela boca do padrinho ou da madrinha, nesta devoção fazemo-lo nós mesmos, voluntariamente, com conhecimento de causa.

No batismo não é pelas mãos de Maria que nos damos a Jesus Cristo, pelo menos duma maneira expressa, nem fazemos doação a ele do valor de nossas boas ações; depois do batismo, ficamos inteiramente livres de aplicar esse valor a quem quisermos ou de conservá-lo para nós. Por essa devoção, damo-nos, porém, a Nosso Senhor pelas mãos de Maria, e lhe consagramos o valor de todas as nossas ações.

127. No santo batismo, diz Santo Tomás, os homens fazem o voto de renunciar ao demônio e às suas pompas: “In baptimo vovent  homines abrenuntiare diabolo et pompis eius”.47 E este voto, afirma Santo Agostinho, é o maior e o mais indispensável“Votum maximum nostrum quo vovimus nos Christo esse mansuros”.48 É também o que dizem os canonistas:“Praecipuum votum est quod in baptismate facimus” – o voto principal é o que fazemos no batismo. Quem, entretanto, guarda tão grande voto? Quem é que mantém fielmente as promessas do santo batismo? Não é um fato que quase todos os cristãos falseiam à fidelidade que no batismo prometeram a Jesus Cristo? Donde poderá vir esse desregramento universal senão do esquecimento em que se vive das promessas e compromissos do santo batismo, e por que cada um não ratifica espontaneamente o contrato de aliança feito com Deus por seu padrinho e sua madrinha?
47) Summa Theol. 2-2, q. 88, art. 2, arg. 1.
48) Epistola 59 ad Paulin.

128. É tão verdade isto, que o Concílio de Sens convocado por ordem de Luís o Bonachão para pôr cobro às grandes desordens dos cristãos, declarou que a causa principal da corrupção reinante vinha do esquecimento e ignorância em que se vivia dos compromissos tomados no santo batismo; e não encontrou melhor remédio tão grande mal do que induzir os cristãos a renovar as promessas do santo batismo.

129. O Catecismo de Concílio de Trento, fiel intérprete deste santo Concílio, exorta os curas a fazer o mesmo, e a relembrar aos fiéis que estão ligados e consagrados a Nosso Senhor Jesus Cristo, como escravos a seu Redentor e Senhor. Eis as palavras textuais: “Parochus fidelem populum ad eam rationem cohortabitur ut sicat aequissimum esse... nos ipsos, nom secus ac mancipia Redemptori nostro et Domino in perpetuum addicere et consecrare”.49
49) Catec. Conc. Trid., p. I, cap. 3, art. 2, § 15, “De secundo Symboli articulo” in fine.

130. Ora, se os Concílios, os Santos Padres e a própria experiência nos mostram que o melhor meio de remediar os desregramentos dos cristãos é fazê-los relembrar as obrigações assumidas no batismo e renovar os votos que então fizeram, não é natural que se faça isto presentemente, de um modo perfeito, por esta devoção e consagração a Nosso Senhor, por intermédio de sua Mãe Santíssima? Digo “de um modo perfeito” porque nos servimos, nesta consagração a Jesus Cristo, do mais perfeito de todos os meios, que é a Santíssima Virgem.

Respostas a algumas objeções

131. Não se pode objetar que esta devoção seja nova ou sem importância. Não é nova porque os concílios, os padres e muitos autores antigos e modernos falam desta consagração a Nosso Senhor ou renovação das promessas do batismo, como de uma prática antiga, aconselhando-a a todos os cristãos. Esta prática também não é sem importância, pois a principal fonte de todas as desordens e conseqüente condenação dos cristãos está no esquecimento e indiferença por esta renovação.

132. Alguns podem alegar que esta devoção, levando-nos a dar a Nosso Senhor, pelas mãos de Maria Santíssima, o valor de todas as nossas boas obras, orações, mortificações e esmolas, nos torna impotentes para socorrer as almas de nossos parentes, amigos e benfeitores.

A esses respondo primeiro que não é crível que nossos amigos, parentes ou benfeitores sofram prejuízo por nos termos devotado e consagrado sem reserva ao serviço de Nosso Senhor e de sua Mãe Santíssima. Seria fazer uma injúria ao poder e bondade de Jesus e Maria, que saberão muito bem valer os nossos parentes, amigos e benfeitores, aproveitando o nosso crédito espiritual, ou por outro meio qualquer.

Segundo, esta prática não impede que rezemos pelos outros, vivos ou mortos, se bem que a aplicação de nossas boas obras dependa da vontade da Santíssima Virgem; e, bem ao contrário, esta circunstância nos levará a rezar com muito mais confiança, do mesmo modo que uma pessoa rica, que tivesse doado a um grande príncipe todos os seus bens, rogaria com redobrada confiança a esse príncipe que beneficiasse a algum amigo necessitado. Seria até causar prazer a esse príncipe dar-lhe ocasião de demonstrar seu reconhecimento a uma pessoa que de tudo se tivesse despojado para engrandecê-lo, que se tivesse reduzido a completa pobreza para honrá-lo. O mesmo se deve dizer de Nosso Senhor e da Santíssima Virgem: eles jamais se deixarão vencer em reconhecimento.

133. Outros dirão, talvez: Se eu der à Santíssima Virgem todo o valor de minhas ações para que ela o aplique a quem quiser, terei de sofrer talvez muito tempo no purgatório.

Esta objeção, produto do amor-próprio e da ignorância da liberalidade de Deus e de sua Mãe Santíssima, destrói-se por si mesmo. Uma alma cheia de fervor e generosa, que antepõe os interesses de Deus aos seus próprios, que tudo que tem dá a Deus inteiramente, sem reserva, que só aspira à glória e ao reino de Jesus Cristo por intermédio de sua Mãe Santíssima, e que se sacrifica completamente para obtê-lo, esta alma generosa, repito, e liberal, será castigada no outro mundo por ter sido mais liberal e desinteressada que as outras? Muito ao contrário, é a esta alma, como veremos a seguir, que Nosso Senhor e sua Mãe Santíssima se mostram mais generosos neste mundo e no outro, na ordem da natureza, da graça e da glória.

134. Vejamos agora, o mais brevemente que pudermos, os motivos que nos recomendam esta devoção, os maravilhosos efeitos que ela produz nas almas fiéis, e as práticas desta devoção.

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